POr ALine SOuza - jornalista
Ver o novo filme de Fernando Meireles no cinema foi um estrondo. O Ensaio sobre a cegueira me fez pensar no que seria do mundo se realmente todas as pessoas parassem de enxergar, ou melhor, se em algum ponto do mundo isso começasse a acontecer sob o risco de se espalhar ao resto do planeta. Quando isso acontece no filme, inspirado na obra do autor português José Saramago, de mesmo nome, o medo dos até então saudáveis os fazem praticar inimagináveis ações de totalitarismo e desprezo, isolamento e abandono para com os novos cegos. Nós, seres humanos, nos descobrimos os piores seres do mundo, capazes de matar ou morrer, capazes de humilhar e submeter o próximo a qualquer coisa para garantir a sobrevivência.
Saramago gosta mesmo de situações caóticas nos livros que escreve. Em As Intermitências da Morte não é diferente, quando propõe pensarmos hipoteticamente no dia em que a morte resolveu fazer greve e parar de matar. Assim, ele também nos joga no meio de um círculo natural interrompido; fazendo do improvável, algo bem provável em seus livros. No Ensaio ele se perguntou o que aconteceria se todo mundo começasse a ficar cego. Eis aí o prato cheio para Fernando Meirelles.
Acostumado a desafios, Fernando Meireles se viu agora diante de uma história onde os personagens não têm nome, onde tudo se passa em um não lugar e seu cerne é uma cegueira branca como leite. Depois de recriar a trajetória da favela Cidade de Deus no Rio de Janeiro e filmar mazelas africanas provocadas pela indústria farmacêutica em Jardineiro Fiel, Meireles precisou fazer muitos testes até chegar à versão final do filme, aquela que conseguiria transmitir ao público a textura opressiva de uma cegueira ao ponto de incomodar, de fazer-nos apertar os olhos para ver alguma coisa na tela como se estivéssemos diante de um sol escaldante enorme. O responsável por essa fotografia que dilata a luz nos objetos brancos até ela ficar com a textura de leite é César Charlone, que também trabalhou com Meireles em Cidade de Deus e Jardineiro Fiel.
O filme é protagonizado por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gabriel Garcia Bernal e Alice Braga, única brasileira no elenco. O fato de os personagens não terem nome faz com que seja os próprios atores o elo de identificação do público com o caráter e a personalidade de cada personagem. O ator é um símbolo. Mas como fazer quando o Gael, um jovem e galante ator, que já até encarnou um revolucionário bastante conhecido nosso, interpreta um vilão sem escrúpulos e asqueroso? Este foi outro desafio intencional de Meireles, que optou pelo ator justamente para romper o paradigma do vilão mauzinho e feioso. Afinal, numa terra sem lei de cegos, a beleza pouco importa e quem tem olho é rei. Ou melhor, rainha.
Julianne é a “mulher do médico”, única capaz de ver no confinamento dos cegos. Parece ter havido uma busca para que ela não se tornasse uma heroína, pois em muitos momentos a personagem desaba com o seu próprio fracasso, se degrada, não suporta viver com o segredo e percebe que, embora tente exaustivamente, é humanamente impossível resolver todo o complexo estado das coisas. Mas uma pergunta não quer calar: o que será que ela diz a Alice Braga (a prostituta) no momento do flagra sexual, além de que pode ver? Acredito que jamais saberei.
Outro ponto que o diretor aparentemente teve como objetivo em seu filme sombrio foi dar tempo ao tempo e ritmo ao ritmo, ou seja, a absolvição do choque vista na tela pelo espectador precisa de tempo para refletir sobre a metáfora da cegueira, que é sóciopolítica no mundo contemporâneo. Podemos ver, mas não enxergar. A crítica social dentro deste filme comercial é bastante sutil e subjetiva. Quem se coloca no lugar do personagem pode descobrir algo sobre si mesmo, talvez a sua própria cegueira e imperfeição. A montagem de absolvição é de Daniel Rezende (de novo Cidade de Deus, O Ano que meus pais saíram de férias e Tropa de Elite) que assume o corte seco veloz.
Uma boa conclusão para este texto seria a feita por Milton Ribeiro no portal Uol: “Se não possui a grandiosidade do livro, é um bom filme; se não incomoda como o livro, atrapalha o suficiente; se parte da parábola perdeu-se, Meirelles não a deturpou — o que seria pecado mortal. Escapou de Meirelles o profundo e justificado pessimismo de Saramago. Seu filme não possui este tom e, com isso, perde impacto, ganhando certa gratuidade para os espectadores mais superficiais. Mas é um bom filme, sem dúvida.”.
O filme foi rodado em três países diferentes: Uruguai (casa do médico), Anhangabaú em São Paulo (cidade arrasada) e no Canadá (hospital de cegos abandonados). Todos formam o não-lugar não identificável, a metrópole acometida pela cegueira. Com uma produção de US$ 25 milhões e 118.145 espectadores em três dias de cartaz, o Ensaio sobre a cegueira (”Blindness”) já é a segunda melhor bilheteria nacional de estréia de 2008. Penso que Meireles devia ter optado por Remo Usai na trilha sonora, talvez o único capaz de expandir da tela as sensações das imagens de Saramago. Agora, por favor, não me venha com essa bobagem de dizer que “o livro é melhor que o filme”. Isso não!
Saiba mais em:
http://www.ensaiosobreacegueirafilme.com.br
Assista ao vídeo gravado pelo filho do Saramago:
http://br.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY
Veja aqui entrevistas e imagens do filme:
http://br.youtube.com/watch?v=6TEhcXRdsCs
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Um comentário:
Maria: Nooosssaaaa! o texto está um primor e o conteúdo rico. Eu vi o filme e concordo com suas observações. Exceto que achei o uso de telas brancas, como o cego via, muito demoradas. Eu editaria um pouco. Mas quem sou eu para fazer tal crítica, mas digo como expectadora. Li o livro e realmente não dá para comparar cinema com livro, são meios diferentes e acho que o diretor conseguiu captar momentos chave da publicação de Saramago. Muito sucesso para você Aline e vou continuar a visitar o blog para acompanhar sua produção. beijos, Lúcia. (Maria Lúcia Azevedo)
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